Performers passam a ser tão essenciais quanto o techno na noite eletrônica

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Artistas não se enquadram em padrões de gênero, com corpos adornados por figurinos elaborados.

Numa casa noturna de paredes pretas no centro paulistano, Iarno sobe num pequeno palco montado à frente da mesa de som do DJ. De roupa preta e branca e maquiagem carregada, o performer está vestido como um palhaço do inferno, que deixou para trás o picadeiro para mostrar seu show a jovens de óculos escuros.

Começa a apresentação. O palhaço pega um urso de pelúcia riscado de canetinha, ao qual se abraça e aperta as laterais da cabeça. Em seguida, cola o seu rosto — maquiado de forma a expressar melancolia — às bochechas do urso, que também estampam tristeza.

Iarno então agarra seu brinquedo pela barriga e começa a pular, como uma criança alegre. Há uma ironia e um amargor na cena, que parece deslocada em uma festa.

Ele larga o urso embaixo da mesa do DJ e encara o público do teatro Mars, antes de passar para as próximas brincadeiras   — segurar um punhado de balões e andar de motocicleta.

A edição de três anos da festa Sangra Muta, onde Iarno se apresentou no fim de outubro, teve mais performers do que DJs, nove contra quatro. A matemática indica que corpos em movimento adornados por figurinos elaboradíssimos passaram a ser tão essenciais na noite eletrônica underground de São Paulo quanto as batidas do techno.

Os performers da madrugada, que viram sua ascensão na última década, têm características em comum. Sua estética é definida por eles mesmos como perturbadora e incômoda.

“Construí essa figura como se fosse uma peste, tem que ser estranha. As pessoas têm que se questionar”, diz Aun Helden, acrescentando que a personagem de si mesma que traz aos palcos, chamada Aun, “é fundamentada num parto entre o estranho e o trauma”.

Para compor seu vestuário, a artista de São Bernardo do Campo produz em casa máscaras de silicone e ovos pretos (“necrosados”), que viraram sua assinatura. São ovos de verdade que ela estoura no palco. Ela se apresenta com frequência na festa ODD, e neste ano também mostrou seu trabalho no festival de música experimental Atonal, em Berlim.

O não enquadramento nos padrões de masculino ou feminino é outro ponto em comum desses artistas. Eles às vezes se identificam como trans, travestis ou inventam neologismos — caso de “transälien”, usado por Anagiza.

“Antes de me reivindicar travesti, tive que performar uma masculinidade compulsória da qual diziam que era como eu tinha que ser, como eu tinha que viver, até conseguir me entender e me livrar das amarras e imposições sociais”, conta a recifense de 23 anos, uma das responsáveis por implantar a política de entrada grátis para transexuais e travestis nas festas.

As máscaras coloridas que Anagiza veste em tempo integral, tanto quando se apresenta quanto no dia a dia, saíram do palco da Mamba Negra e estamparam os clipes “Etérea”, do rapper Criolo, e “Oração”, da cantora Linn da Quebrada, nos quais ela participa.

Diferente de um show de drag queen, que geralmente conta com lip sync, essa nova leva de artistas fica calada no palco. A música não tem letra e a comunicação é não verbal, baseada em olhares e gestos. Mas, quando dão entrevistas ou em postagens em suas redes sociais, o discurso desses performers é altamente engajado.

Às vésperas da parada LGBT deste ano em São Paulo, por exemplo, a performer Rodrag discursou no clube Zig, pedindo que o público fizesse silêncio para ouvir a fala “de um corpo preto e periférico”. Vinda de Araraquara, no interior paulista, ela reivindicou maior participação de transexuais num evento marcado pela presença de homossexuais do sexo masculino. Também pediu o reconhecimento do largo do Arouche como patrimônio LGBT, em oposição ao atual processo de reforma do local.

Rodrag é, ela mesma, um exemplo de outra característica comum na cena — a maioria dos performers são negros e de origem periférica, diferença marcante em relação ao público em grande parte branco e de classe média das festas nas quais se apresentam.

A entrada de performers negros — que trouxeram para as baladas frequentadores e DJs também negros — se configurou a princípio pelo esforço desses artistas, para só num segundo momento ser abraçada pelos produtores das grandes festas do underground paulistano.

“A gente está construindo o nosso espaço dentro disso. As festas estão vendo que é vergonhoso ter um lineup racista, então estão colocando mais [artistas negros]”, diz Euvira, responsável pela seleção de performers e DJs negros de diversas baladas. “É uma parada estrutural a ser pensada, principalmente se você quer vender a ideia de festa inclusiva”, completa Aun Helden.

Euvira, que criou o coletivo de artistas negros Coletividade Námíbià, afirma que a inclusão seria um movimento lógico em noites de techno e house, estilos surgidos na comunidade negra americana. Mas, para Rodrag, a questão tem fundo político e social.

Ela sustenta que, ao permitir a ascensão da classe C, os governo Lula e Dilma fizeram com que jovens periféricos chegassem a lugares que não ocupavam antes, incluindo as baladas do centro de São Paulo.

Tanto Euvira quanto Rodrag concordam que mais negros — e trans — frequentam as noites de techno hoje do que há poucos anos, embora mais precise ser feito para aumentar a inclusão.

Se neste ano festas organizadas em parques ou nas ruas do centro da cidade têm performances em cima das caixas de som — ou em mesinhas improvisadas — , isso se deve à balada Voodoohop.

Há dez anos, o evento recebia apresentações-relâmpago da drag queen Forster. Com o corpo pintado de azul, peruca de Amy Winehouse e roupa de estampa animal, ela se lambuzava com groselha em shows curtíssimos, lembra o artista Volatille Ferreira.

No ano seguinte, Ferreira passaria a fazer performances na Voodoohop, com figurino inspirado no filme “The Rocky Horror Picture Show”, de 1975, ao lado de outra figura importante da cena, Rafael Felice, cujo visual era influenciando por deuses gregos.

É curioso observar que a consolidação deste movimento artístico, que agora vive seu auge, se deu à margem das galerias e dos museus, espaços tradicionais de arte. “São artistas que gostam da noite e por consequência trabalham nisso. Na noite você é mais fluida, dança mas se diverte, tem uma liberdade maior”, diz Euvira, tentando explicar o fenômeno. “Não é tão técnico.”

Outros performers de destaque

Alma Negrot: a “drag queer” fez styling e maquiagem do clipe da chilena radicada no Rio de Janeiro Valesuchi

Animalia: coletivo, faz também shows em espaços institucionais e apresentações musicais

Carmen Laveau: seus olhos esbranquiçados garantem shows com visual dark e acenos ao demônio

Dudx: usa maquiagens complexas e incorpora a seus shows elementos do teatro butô e do circo

Ectocorp: Enrico Moscatelli tem braços postiços que parecem canhões e uma máscara que lhe dá feições de bebê

Ivana Wonder: “transformista”, como se define, é também cantora, metade do duo Vermelho Wonder

Loïc Koutana: bailarino da banda Teto Preto, lança em breve seu primeiro disco solo como cantor

Okofá: “nordestinamente indígena”, se define no Instagram o performer que costuma esconder o rosto

Travestyris: na passarela da Casa dos Criadores ou na balada, muda de visual constantemente

Valenttina Luz: de cabelo dread lock loiro e botas de cano comprido, usa e abusa de leques em seus shows

via Folha de São Paulo

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