O autor do projeto UltrAlice, Ciro MacCord, descreve o projeto da seguinte maneira “O projeto se utilizará do Design Gráfico enquanto linguagem pura, desconectada do circuito comercial, como forma de questionar a hegemônica proposta mercadológica, e abodará o complexo tema das drogas psicodélicas através de uma ácida crítica à desinformação e às defasadas políticas públicas atuais — assentadas sobre um violento proibicionismo incapaz de lidar com a real complexidade das drogas.”
Confesso que após a suspensão do Baladaboa achei que nunca mais iria ver na internet um projeto relacionado com esse tema. O projeto que pretendia educar os usuários de ecstasy, foi um dos pioneiros no país, porém em 2007 teve suas verbas cortadas pelo governo paulista no qual alegou que o material divulgado nos clubes e faculdades “incentivavam o uso de ecstasy”.
Em festivais como Universo Paralello, Festival Fora do Tempo e Soul Vision é comum encontrarmos grupos que buscam conscientizar as pessoas sobre “redução de danos”. Mas todos sabemos que o consumo desses “psicoativos” acontece além dos festivais.
A baixo um texto extraído do UltrAlice.
É preciso, antes de tudo, reconhecermos que o uso ilítico de psicoativos ocorre nos mais variados locais e pelos mais variados grupos e através de distintas famílias de químicos: entre elas, as substâncias psicodélicas. Apesar de agirem muito diferentemente de drogas estimulantes como a cocaína e o crack e de drogas depressoras como o álcool, os psicodélicos também incidem em danos à saúde pública. Mas de que forma estes riscos de apresentam? E de que maneira as lesões provocadas pelo abuso e uso inconsciente podem ser efetivamente reduzidas?
Durante os anos 60, atamancados na efervescência da Contracultura, os psicodélicos disseminaram-se entre vastas populações, sobretudo de jovens, os principais proponentes do Movimento Hippie — um movimento que, diante do ecatômbico panorama da guerra e de uma completa escassez de perspectivas, procurava questionar a hegemonia capitalista norte-americana, criticando ferozmente a capenga tentativa de suprimir a desesperança do povo através de gadgets inacabáveis e novidades tecnológicas para o conforto. O sonho americano estava sendo mostrado às avessas.
Nesta dinâmica de grandes mudanças sociais e um fluxo que pretendia se finalizar na ruptura, os psicodélicos representaram uma espécie de motor de auxílio. Tais substâncias, até então pertencentes aos dominós da ciência e às mais novas vanguardas que investigavam principalmente o comportamento, o cérebro e a consciência humana, despiram-se da imagem de alcalóides promissores na pesquisa clínica e respostas à natureza do ser e da percepção para tornarem-se o produto do propagandismo hippie que dizia que estas drogas expandiam a mente.
De certa forma, tal propagandismo baseava-se em experiências verídicas e opiniões compartilhadas: parte dos jovens que propuseram o movimento da Contracultura haviam se voluntariado anteriormente para experimentos clínicos com substâncias como o LSD, inclusive para o programa investigativo da CIA, o MKULTRA, que procurava estabelecer estratégias químicas de guerra ou uma busca pelo tão desejado soro da verdade. O insucesso dos testes para a guerra, no entanto, não foi capaz de apagar as experiências profundas e transformadoras vivenciadas pelos voluntários, que, ao juntarem-se a alguns cientistas que abandonaram o caráter acadêmico em função de um certo deslumbre pelos psicodélicos, como o psicólogo Timothy Leary, formaram a base do Movimento Hippie.
Este momento representou o trágico escape das substâncias psicodélicas dos domínios científicos: a disseminação do uso indiscriminado e inconsciente destas drogas significou o fim absoluto das pesquisas clínicas que mergulhou tais químicos em uma moratória científica de aproximadamente três décadas. Durante os anos 60, substâncias como o LSD popularizaram-se até mesmo mais do que a própria maconha (THC) e milhares de jovens e adultos entraram em contato íntimo e direto com os fármacos.
Entrava em cena, pela primeira vez na história dos psicodélicos, o uso recreativo destas substâncias — e de forma massiva. Até então tais drogas já haviam desenvolvido importantíssimos papéis na cultura e religiosidade, como no universo dos povos pré-colombianos, e também, de forma muito expressiva, no mundo científico, mas a sua significância enquanto aspecto modificador da esfera social em larga escala era novidade.
A disseminação do uso recreativo de drogas como o LSD e psilocibina, no entanto, denunciou uma série de riscos e perigos que jamais se apresentaram sob o olhar da religião ou da ciência e, ao contrário do que se supõe inicialmente, não diziam respeito a danos fisiológicos ou dependência, mas sim ao frágil equilíbrio da psique. Estudos sobre os riscos físicos apresentados, como os do químico suíço Albert Hoffman para o LSD, provaram e continuam provando que a toxicidade cerebral destes alcalóides é baixa e que eles não possuem mecanismos capazes de gerar dependência física, ou seja, os riscos fisiológicos não são capazes de acarretar distúrbios orgânicos ou provocar overdose, mas podem apresentar-se como drogas devastadoras no aspecto psíquico.
O grande perigo reside no fato de que os efeitos psíquicos apresentam-se de forma extremamente variada e provocam experiências imprevisíveis e subjetivas: elas podem mergulhar o usuário tanto em uma vivência de êxtase e expansão consciencial como também em uma vivência aterradora de medos profundos, paranóia e pânico (má viagem, bad trip). Os psicodélicos desencadeiam experiências intensas de alteração de percepção, e a natureza das “jornadas”, diferentemente do que se crê, vai muito além do aspecto visual: ela ultrapasse os limites do próprio corpo e pode provocar novas sensações que concernem à natureza do próprio ser e da consciência. Estes efeitos, jamais observados em outra família de fármacos, apresentam-se de maneira profunda e submergem o usuário, vertiginosamente, em um mundo de percepções estranhas e irreconhecíveis, e é aqui que reside o risco: o despreparo e a falta de monitoramente científico ou religioso no trato com estas modificações tão bruscas podem causar severas marcas na psique humana.
Além deste fator, outra característica única dos psicodélicos, e que também incide nos perigos do uso recreativo, é a capacidade de provocarem um efeito conhecido como psicolítico: liberação de conteúdos reprimidos, traumas, motivações afetivas e reconhecimentos dos porquês da personalidade na forma de revivências e experiências de catarse.
Tais efeitos, que se sobrepõe terminantemente aos os efeitos fisiológicos — dilatação das pupilas, aumento da pressão sanguínea e efeitos eméticos variáveis (vômito) — decorrem de maneira segura sob o monitoramento científico ou na prática religiosa: universos onde o reconhecimento destas substâncias e o uso consciente e o conhecimento prévio são determinantes. Já no uso recreativo, iniciado nos anos 60 e definitivamente estabelecido com o nascimento da cultura da música eletrônica a partir das décadas de 80 e 90, eles decorrem de forma aleatória e ameaçadora: a ignorância, o uso abusivo e a total ausência de monitoramento podem transformar os efeitos profundos em altos riscos para a saúde mental. Torna-se fácil imaginar as decorrências negativas das alterações intensas e efeitos psicolíticos em um usuário recreativo que não possui nem mesmo idéia da natureza daquilo que ingere.
Estudos como o do psiquiatra norte-americano Sydney Cohen, em 1960, procuraram estabelecer porcentagens relativas a estes danos. Cohen contou com dados de 44 pesquisadores da época que investigavam substâncias como o LSD e a mescalina clinicamente, casos de administração que somavam aproximadamente 25.000 doses em 5.000 voluntários. Cohen concluiu que, sob condições médicas apropriadas e preferencialmente trabalhando-se com voluntários saudáveis (trabalhou-se bastante com pacientes psicóticos), a pesquisa psicodélica não oferecia risco. Em 69, o psiquiatra britânico Nicolas Malleson, apesar de porcentagens um pouco maiores, chegou a conclusões similares.
A forma com que estes danos se apresentam, no entanto, ainda representam mistérios científicos. A partir do momento em que estas drogas espalharam-se em grandes populações e a sua utilização recreativa foi amplamente advogada, no decorrer dos anos 60, surgiram relatos sobre psicoses permanentes provocadas pela ingestão e até mesmo de suicídios desencadeados por este uso. A grande questão estabelecida nos laboratórios era: estas drogas provocam o despertar de estados psicóticos latentes e geneticamente herdados ou possuem a capacidade de gerar, por si próprias, estados psicóticos permanentes?
Estudos que procuravam quantizar estes danos, como os dos psiquiatras Sydney Cohen e Nicolas Malleson, no entanto, tornaram-se de extrema dificuldade a partir do final dos anos 60, quando os psicodélicos foram proibidos nos territórios mundiais e inclusive retirados, à força e de maneira arbitrária, das mãos da ciência. Estimou-se que um quarto dos americanos que haviam experimentado o LSD, por exemplo, sem monitoramento científico, experienciaram as conhecidas más viagens (bad trip): um evento preocupante no que diz respeito aos danos psicológicos severos desencadeados pelos psicodélicos.
A hipótese mais aceita no meio científico é a de que estes acalóides, ao provocar tais danos severos e a longo-prazo, na verdade, dão uma espécie de clique em quadros psicóticos pré-existentes, latentes e herdados. Mas enquanto a ciência não é capaz de responder com exatidão a certas perguntas e mesmo que procuremos agir com dissimulação, o uso recreativo e ilícito de drogas com o LSD, hoje, representam uma perigosa verdade social: se a violência de um proibicionismo sedimentado em um tabu generalizante não é capaz de lidar com a natureza complexa e com os riscos apresentados pelos psicodélicos, como diminuir tais danos?
As políticas de redução de danos tem tomado força nos últimos anos, mas também tem sofrido o ataque conservadorista que as consideram uma espécie de apologia. A questão é simples: ou reconhecemos que as políticas públicas de segurança não são capazes de sanar a problemática das drogas e que estas drogas precisam ser discutidas e compreendidas pela sociedade como um todo ou fingimos que tais drogas não existem e que os danos por elas provocados são meras manifestações do além.
A política meramente proibicionista presume-se total, mas acaba por mergulhar no reducionismo do universo das drogas: ela anula todas as demais implicações — saúde pública, história, religião e até mesmo a própria ciência — e procura estabelecê-las dentro de uma única problemática: a da segurança pública. Esta incompetência, ao contrário do que presumem as frentes conservadoras, pode ser positivamente transformada pela incorporação de políticas públicas de redução de danos: estas políticas estendem-se da disseminação da informação correta e sincera até o universo da educação, onde denunciam o completo despreparo das instituições em instruir a população, de maneira honesta, sobre os riscos reais das drogas e sobre a diferença abissal entre os grupos de psicoativos.
Neste contra-fluxo encontramos iniciativas como as da MAPS (Associação Multidisciplinar para Estudos Psicodélicos), que produz material anti-desinformação de alcance público e que segue diretrizes de políticas de redução de danos na questão das substâncias psicodélicas. Como um bom exemplo, temos o vídeo Lidando com Experiências Psicodélicas Difíceis, através do qual especialistas procuraram definir princípios gerais de como auxiliar alguém que está vivenciando uma má viagem (bad trip) e de como esta abordagem pode ser determinante para a diminuição de possíveis danos para o usuário. Como dito no próprio vídeo: psicodélicos são utilizados por variados motivos e por variados grupos sociais, você pode encontrar alguém próximo sob efeito de um psicodélico em alguma altura da vida.
A recreatividade no mundo dos psicodélicos oferece riscos muito distintos de outras famílias, como a dos estimulantes e a dos depressores, e há muito despreparo e falta de informação neste trato. É preciso que se discuta o uso, a natureza e os riscos destas drogas nos ambientes familiares, escolas e rodas de amigos, do contrário os danos irão continuar incidindo em um submundo que se passa debaixo dos nossos próprios narizes e sob os nossos olhos hermeticamente fechados.